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Acesso em 01/05/2024 às 03h47.

Tratamento químico de couros e peles

Tratamento químico de couros e peles

O couro é a pele do animal preservada da putrefação por um processo denominado curtimento. A pele curtida se torna flexível e macia, pronta para ser utilizada na confecção de calçados, bolsas, carteiras, roupas e malas, no revestimento de estofados, na produção de chapéus, bolas, tapetes e vários outros produtos. Podem ser curtidas as peles de bovinos, inclusive bezerros, ovelhas, cabras, lhamas, vicunhas, camelos, porcos, cobras, cavalos, búfalos, cangurus, crocodilos, peixes, rãs, aves, como o avestruz, e outros animais.

As civilizações antigas já conheciam técnicas de preparação e curtimento de peles e couros. Existem registros do uso de couros para confecção de sandálias no Antigo Egito, Pérsia, China e durante o império romano. Hoje a indústria do couro emprega alta tecnologia, e começa a adotar práticas de produção que levam em conta a preservação do meio ambiente.

Processamento – Para ser utilizada na confecção de calçados, bolsas e outros produtos, a pele tem que passar por um processo de tratamento desde o momento em que é retirada do animal até ficar pronta para o uso. O processamento mantém a natureza fibrosa da pele e, com o uso de produtos químicos, retira o tecido interfibrilar, passível de putrefação.

 

O processamento tem uma série de etapas e operações, e se inicia com a esfola, que consiste na remoção da pele do animal. Ao ser retirada, a pele é submetida a processos de conservação com sal comum (cloreto de sódio) ou por secagem. Também podem ser utilizados sistemas de conservação de curta duração, mais modernos, com o emprego de agentes antissépticos, sem a utilização de sal, que é muito poluente. A finalidade da conservação é impedir a decomposição da pele até o início dos processos que irão transformá-la pelo curtimento em um material resistente.

Chama-se “flor” a camada superior do couro. A flor contém o desenho da superfície da pele formado pelas aberturas dos folículos pilosos e poros após a retirada dos pelos (depilação). O desenho é mantido após o curtimento e cada tipo de pele possui sua característica própria. Assim, o couro de boi apresenta uma flor característica e o de ovelha tem outra, por exemplo.

Após o processo de conservação tem-se a chamada pele crua. Para se obter o couro acabado, pronto para o uso, as peles cruas são submetidas a uma série de processos divididos em três etapas essenciais, denominadas operação de ribeiracurtimento e acabamento.

Ribeira – A pele é constituída por três camadas: epiderme, derme e hipoderme. Na operação de ribeira é feita a limpeza e eliminação dos componentes da pele que não poderão estar no produto final. Nesta etapa do processo, a epiderme e a hipoderme devem ser removidas e a derme, parte mais importante e que será transformada em couro, vai ser preparada para o curtimento. As etapas nas operações de ribeira são, pela ordem:

– Remolho que consiste na lavagem da pele para retirada do sal, reposição do teor de água e limpeza, efetuado em um equipamento denominado fulão.

– Depilação-caleiro tem o objetivo de retirar o pelo ou a lã da pele, remover a epiderme e separar as fibras e fibrilas do colágeno presente no tecido conjuntivo dos animais. A depilação normalmente é feita em um banho de sulfeto de sódio, aminas ou enzimas para remoção dos pelos e camadas da pele. Os pelos são formados quase que totalmente por queratina, que é dissolvida pelo composto sulfurado. Nas peles em que se deseja preservar a epiderme, pelos ou lã deve-se empregar sistemas de trabalho sem depilação. O caleiro é o momento em que se adiciona cal hidratada para provocar o intumescimento da pele e promover a limpeza entre as fibras, permitindo que os próximos processos tenham mais eficácia.

Descarne vem a seguir. É uma operação mecânica para eliminar restos aderidos ao carnal, tecido subcutâneo e adiposo. O descarne retira resíduos de gorduras para facilitar a penetração dos produtos químicos que serão aplicados nas etapas posteriores do processamento.

– Divisão – Quando se deseja obter couros mais leves, utilizados na produção de calçados e vestuário, a pele, que é bastante espessa, é dividida em duas lâminas em uma máquina especial. A lâmina superficial, denominada flor, é a mais valiosa, e a lâmina inferior é denominada raspa ou crosta. A espessura das lâminas vai depender do tipo de artigo que se deseja fabricar. A partir da camada inferior podem ser obtidos couros acamurçados e camurças para roupas ou calçados.

Desencalagem é a próxima etapa da operação de ribeira, e visa a eliminação da cal. São usados agentes que reagem com a cal, que poderão ser retirados com uma lavagem posterior. Desta forma é revertido o inchamento da pele já desprovida de pelos.

Purga é o passo seguinte. A purga consiste em uma limpeza mais profunda, feita com enzimas proteolíticas que limpam a pele dos restos de epiderme, pelo e gordura, originando uma flor mais fina e sedosa. Durante a purga são retirados materiais queratinosos degradados, as gorduras são transformadas em ácidos graxos e glicerol e os fibroplastos são decompostos.  

Píquel, última etapa da ribeira, tem como função preparar a pele para o curtimento. Em sua composição mais simples, o píquel consiste de um banho em uma solução salino-ácida que tem por objetivo ajustar o pH da pele para receber o tipo de curtente a ser empregado, normalmente sais de crômio.

Curtimento – No final da etapa de ribeira a pele já está limpa e livre de tudo o que não interessa no produto final. Mas não apresenta estabilidade, e assim como a pele fresca ou crua, também está sujeita à ação de agentes agressivos, à degradação e à putrefação. Com o curtimento, as peles adquirem estabilidade, e a partir daí recebem o nome de couro.

O curtimento envolve a reação de sais de metais ou de extratos tanantes vegetais ou sintéticos com grupos reativos na estrutura proteica. Existem muitos tipos de curtimento, mas o mais utilizado é o curtimento com sais de crômio. Também pode-se fazer o curtimento com taninos naturais para obtenção de couros pesados, como couros industriais e solas. Os produtos inorgânicos mais utilizados como curtentes são os sais de crômio, de zircônio, de alumínio e de ferro, e os produtos orgânicos utilizados são os curtentes vegetais, curtentes sintéticos, aldeídos e parafinas sulfocloradas.

Os couros curtidos com crômio são chamados de wet blue. São couros prontos para serem submetidos a tingimentos, recurtimento e acabamento, que irão conferir as características desejadas ao produto final. Atualmente, cerca de 98% dos couros produzidos no Brasil são curtidos com sais de crômio.

O wet blue não é o único produto obtido após o processo inicial de curtimento. Existem também o wet white e o wet brown, resultantes de diferentes curtentes. O wet White é obtido quando se pré-curte a pele com um aldeído ou um tanino sintético fenólico. Ele ganhou esta denominação porque o couro adquire uma coloração clara. Quando a pele é curtida com tanino vegetal ela adquire um tom castanho claro, e se chama wet brown.

O enxugamento é uma etapa mecânica para eliminar o excesso de água e facilitar a etapa seguinte, o rebaixamento do couro. O rebaixamento é feito em uma máquina que uniformiza a espessura do couro.

Acabamento – Na etapa de acabamento são executados tratamentos complementares às operações anteriores, que darão o aspecto final ao couro pronto. O acabamento inclui as operações de recurtimento , quando são feitas correções da flor para reparar arranhões e defeitos e definir características como maciez, elasticidade, enchimento, toque e tamanho do poro da flor, tingimento, que confere cor, engraxe, que influi em características como resistência à tração, impermeabilidade, maciez, flexibilidade, toque e elasticidade, secagem, lixamento e acabamento propriamente dito, última etapa do processamento, quando são aplicados produtos sobre a flor para melhorar seu aspecto e aumentar a proteção para o couro.

Brasil – O Brasil é o terceiro maior produtor de couro de bovinos do mundo, atrás apenas da China e dos Estados Unidos, de acordo com dados de 2010 da Food and Agriculture Organization (FAO). Os números da FAO revelam que o país possui o segundo maior rebanho bovino do mundo, só perdendo para os Estados Unidos.

O Brasil conta com mais de 700 curtumes em operação. São microempresas familiares, médias e grandes empresas. O país conta inclusive com a maior empresa curtidora no mundo inteiro. O Centro das Indústrias de Curtumes do Brasil (CICB) informa que em 2011 as exportações brasileiras de couros somaram 2,05 bilhões de dólares, com aumento de 17% em relação a 2010. Naquele ano foram exportadas 26,7 milhões de peças. Os estados que mais exportaram foram Rio Grande do Sul, São Paulo, Paraná, Goiás e Ceará e os maiores compradores dos couros brasileiros foram China, Hong Kong, Itália, Estados Unidos, Alemanha e Coreia do Sul.

De acordo com o Centro das Indústrias de Curtumes do Brasil, o parque industrial brasileiro utiliza tecnologia moderna, dispõe de farta mão de obra especializada e conta com os mais avançados produtos químicos.

Impactos ambientais – De acordo com o Guia CETESB Produção Mais Limpa – Curtumes, de 2005, os principais aspectos ambientais envolvidos no setor são o consumo de água, em torno de 25 a 30 metros cúbicos de água por tonelada de pele salgada, e o alto consumo de energia, especialmente nas operações de secagem, no aquecimento da água dos banhos e para acionamento dos equipamentos da estação de tratamento de efluentes e fulões. Outro aspecto com consequências ambientais é o uso e o descarte de produtos químicos nas diferentes etapas do processo produtivo, como solventes, agentes branqueadores e sais de crômio.

Historicamente a produção de couros sempre teve significativo impacto no meio ambiente, mas hoje boa parte das indústrias do Brasil investem em programas de redução de emissões, otimização de processos e tratamento de efluentes, graças à adoção de uma legislação mais rigorosa no país, e ao aumento da consciência da necessidade de uma produção mais limpa e sustentável, mudando assim este cenário. Miguel Carlos França, engenheiro químico do Curtume Tropical/Boi Santo, de Franca, explica que hoje os curtumes brasileiros, principalmente os das regiões Sudeste, Sul, Centro-Oeste e Nordeste, utilizam os produtos químicos como os sais de crômio e o enxofre de maneira muito mais sustentável que no passado. Como exemplo ele citou a empresa onde trabalha, em que os dois principais banhos, de enxofre e sais de crômio, são reciclados, ou seja, trabalham em circuito fechado. Os dois componentes químicos só são descartados para tratamento uma vez por mês, o que reduz significativamente seu impacto sobre o meio ambiente.

Segundo França, a empresa também está trabalhando em conjunto com entidades de pesquisa em um projeto para utilização do lodo primário (isento de metais pesados) da estação de tratamento para compostagem. Segundo o engenheiro químico, grandes curtumes com atuação no Brasil também possuem projetos sustentáveis, e já é muito grande dentro do setor a conscientização sobre a importância da sustentabilidade. Hoje é impossível falar em produção de couro no Brasil sem pensar em sustentabilidade, garante o profissional, lembrando que o Brasil não chegaria a ser um dos maiores exportadores de couro se as indústrias mantivessem práticas não sustentáveis em seu processo produtivo.

As emissões para a atmosfera são outro problema ambiental gerado por curtumes. O odor proveniente de substâncias voláteis é uma característica desta indústria, mas hoje é possível reduzir consideravelmente os índices com a utilização de processos mais avançados, bem como melhorias no sistema de tratamento de efluentes, diz o engenheiro químico.

 

 

 

 

 


Referências:
 
Hoinacki, Eugênio; Moreira, Marina V.; Kiefer, Carlos G. – Manual Básico do Processamento do Couro. Senai, Porto Alegre, 1994;
 
Hoinacki, E – Peles e Couros: origens, defeitos, industrialização. Senai/RS, 2ª ed.,1989;
 
Class, Isabel C. e Maia, Roberto A. – Manual Básico de Resíduos Industriais de Curtume. Senai, Porto Alegre, 1994;
 

Texto produzido pela Assessoria de Comunicação e Marketing do CRQ-IV/SP, sob a supervisão do Dr. Antonio Carlos Massabni, professor titular aposentando do Instituto de Química da Unesp de Araraquara e Miguel Carlos França, Engenheiro Químico – Curtume Tropical/Boi Santo

Fotos e ilustrações
Stock.xchng
Wikimedia Commons 
Publicado em 09/08/2012

 

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