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Acesso em 26/12/2024 às 16h40.

Cientistas usam cinzas geradas pela queima do bagaço da cana para recuperar nutrientes da vinhaça

Cientistas usam cinzas geradas pela queima do bagaço da cana para recuperar nutrientes da vinhaça

Método pioneiro da UFSCar transforma o resíduo da produção de etanol em fertilizante rico em potássio e nitrogênio.

26 de agosto de 2024, às 8h17 - Tempo de leitura aproximado: 6 minutos

As cinzas foram mergulhadas em um líquido que simula a vinhaça para a avaliação da metodologia (foto: Milena Maria Antonio)

 

O Brasil é responsável por 8% do consumo mundial de fertilizantes, sendo o potássio o principal nutriente aplicado nas lavouras. Cerca de 96% do potássio que o país consome é importado, segundo dados recentes do governo federal. Entretanto, é possível obter esse mineral a partir de resíduos da indústria sucroenergética, como a vinhaça.

“Em 150 metros cúbicos de vinhaça encontramos, em média, 340 quilos de potássio. Importamos esse insumo, sobretudo nitrato de potássio, enquanto jogamos fora uma imensa quantidade dele. Além do desperdício, é uma situação que nos deixa vulneráveis, até mesmo a conflitos, como, por exemplo, a guerra da Ucrânia, país que tradicionalmente nos fornece o fertilizante”, resume a química Roselena Faez, professora titular da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), campus de Araras.

Com seus orientandos do Programa de Pós-Graduação em Agricultura e Ambiente, Faez vem tentando encontrar meios de reutilizar o potássio e o nitrogênio da vinhaça, gerada em enormes quantidades pela indústria da cana. Para cada litro de etanol produzido são gerados de 12 a 18 litros de vinhaça.

Em um dos trabalhos, Faez e sua orientanda de mestrado Milena Maria Antonio usaram as cinzas resultantes da queima do bagaço da cana para retirar esses nutrientes da vinhaça. O estudo foi publicado em abril deste an Journal of Environmental Management e contou com o apoio da FAPESP.

Cinzas – O bagaço da cana-de-açúcar é fonte de energia para a indústria, que queima o material. A cientista ressalta que essa combustão acontece em altos-fornos, sem parâmetros controlados, e gera basicamente dois resíduos: fuligem e cinzas. “O interessante das cinzas é que elas têm material carbonáceo, consistindo em uma parte de carbono e também sílica. Trata-se de um material poroso, que ajuda no processo de adsorção. Existem vários projetos para uso desse resíduo, principalmente como aditivo para material cerâmico, tijolo, asfalto. Mas utilizar as cinzas não modificadas para recuperar nutrientes da vinhaça é algo inédito.”

Ela explica que as cinzas, com um perfil heterogêneo, compreendem vários tipos de partículas, do ponto de vista estrutural. Podem ser irregulares, esféricas, tubulares fibrosas ou prismáticas. As tubulares fibrosas apresentam maior porção carbonácea, as angulosas irregulares têm grande proporção de sílica. “Além de grande porosidade, essas partículas têm grupos hidroxilas e grupos carbonilas com cargas negativas que interagem com as cargas positivas dos íons em que estamos interessados [de potássio e nitrogênio]. Assim, além das interações físicas proporcionadas pela porosidade [adsorção], há também interações químicas [absorção].”

De acordo com Faez, muitas pessoas trabalham para melhorar a capacidade de sorção (adsorção e/ou absorção) das cinzas com modificação superficial das partículas ricas em sílica. “É possível adicionar outros grupos químicos ali, mas esse trabalho adicional não era desejável. A intenção era pegar dois resíduos brutos e saber o que a gente conseguiria fazer com eles, num processo com o menor gasto energético possível e que gerasse dois produtos interessantes. Assim, usamos as cinzas após simples lavagem e secagem. Partimos do princípio de que, quanto menos processamento for necessário, mais fácil será convencer a indústria sucroalcooleira a inserir essa nova etapa no processo produtivo.”

Vinhaça – O rejeito representa um problema por demandar muito oxigênio para decompor a matéria orgânica, tanto quimicamente quanto bioquimicamente (com a ajuda de microrganismos). Muito rica em potássio (aproximadamente 4 mil partes por milhão a cada 100 mililitros), além de fósforo e nitrogênio, é comumente usada como fertilizante, sendo jogada diretamente no solo, às vezes diluída. “Colocada diretamente no campo, que é o que geralmente se faz, pode provocar acidificação e salinização do solo.”

As normativas existentes exigem que a vinhaça seja tratada antes de empregada para tal finalidade. No Estado de São Paulo, maior produtor brasileiro de cana-de-açúcar, a aplicação da vinhaça no solo agrícola foi regulamentada pela Norma Técnica P 4.231, editada pela Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) em 2005.

“Entre os cientistas, já existe muita gente pensando na vinhaça, sempre no sentido de diminuir sua demanda bioquímica. Entretanto, não encontramos nenhum trabalho com o objetivo de reutilizar seus nutrientes”, garante Faez.

Segundo ela, a vinhaça é a continuação do processo de destilação e contém muitos compostos que vão gerando ácidos orgânicos ao longo do caminho. “Assim, no processo de sorção, certamente também estamos retirando outros componentes da vinhaça.”

As cientistas conseguiram não somente recuperar os nutrientes desejados, mas melhorar a própria vinhaça. “Melhoramos a sua acidez, deixando-a com o pH neutro, próximo a 7, graças ao caráter alcalino das cinzas. Além disso, demonstramos com sucesso o potencial das cinzas como sorvente de nutrientes eficazes para o tratamento da vinhaça.”

Elas começaram identificando as condições ideais de sorção usando, para isso, uma solução que simulava a vinhaça. As cinzas, mergulhadas no líquido, foram deixadas em uma mesa de agitação. Chegaram à proporção de 2,5 gramas (g) de cinzas e 6 horas (h) de tempo de contato entre as cinzas e o líquido.

Após a identificação das condições ideais de sorção, dois testes foram realizados com a vinhaça in natura. Primeiro, 2,5 g de cinzas e 100 mL de vinhaça foram misturados em condições predeterminadas por 6 e 24 horas. O segundo teste foi um processo de três etapas que totalizou 72 horas, com as cinzas sendo substituídas a cada etapa.

“No primeiro, usamos a menor quantidade possível de cinzas no tempo mais curto possível para avaliar a concentração dos íons de interesse. E vimos que, se deixássemos as mesmas cinzas na vinhaça por um período longo, como 24 horas, o processo não se mostrava eficiente. Então, fizemos um segundo teste, de 72 horas, em bateladas, trocando as cinzas a cada 24 horas.”

As cinzas ricas em potássio e nitrogênio resultantes do processo podem ser usadas como fertilizante, enquanto da vinhaça foi retirado seu caráter ácido, o que deve reduzir o impacto negativo para o solo. “Outra aluna está começando a avaliar o uso da vinhaça tratada no solo e seu efeito em comparação à não tratada”, adianta Faez.

Segundo a cientista, a ideia de sustentabilidade deu início a um processo revolucionário, no qual os ciclos produtivos não podem mais ficar abertos, devendo se fechar sem deixar pegadas. “Mas isso é histórico: a história da química é assim. Hoje, nosso grande problema é minimizar o uso de recursos minerais. E os fertilizantes que usamos são obtidos por mineração. Além disso, o uso excessivo desses compostos tem impacto. Não podemos perder mais nada, não existe mais resíduo. Aliás, essa palavra é imprópria. Resíduo é oportunidade e não problema.”

Reportagem de Karina Ninni | Agência FAPESP 

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