A química das plantas medicinais
A química das plantas medicinais
Hoje em dia estamos acostumados a correr para uma farmácia a fim de aliviar uma simples dor de cabeça ou outros males que nos afligem. Entretanto, grande parcela da população mundial ainda depende das plantas como fonte exclusiva de drogas para aliviar seus males. O uso de plantas medicinais no alívio de doenças data de tempos remotos e o conhecimento da medicina popular tem servido como base para o desenvolvimento de fármacos de grande importância. Após séculos de uso empírico de preparações medicinais obtidas a partir de plantas, o primeiro isolamento de um princípio ativo no século XIX marcou uma nova era no uso de plantas medicinais e o começo da busca de novas drogas a partir de espécies vegetais.
As plantas superiores produzem diversas substâncias que podem ser usadas para a manutenção da espécie e que desempenham uma função essencial no vegetal, tais como a fotossíntese, a respiração e o transporte de solutos, e por isso são chamadas de metabólitos primários. Estes compostos envolvidos no metabolismo primário possuem uma distribuição universal nas plantas e é o caso dos aminoácidos, dos nucleotídeos, dos lipídios, carboidratos e da clorofila. Em contrapartida, o metabolismo secundário origina compostos que não possuem uma distribuição universal, pois não são necessários para todas as plantas. Estas substâncias são derivadas do metabolismo primário e recebem o nome de metabólitos secundários ou produtos naturais. São compostos que apresentam baixa massa molecular, comparados com os metabólitos primários, e distribuição restrita entre espécies ou gêneros pertencentes à uma mesma família botânica dentro do reino vegetal. As principais classes são flavonóides, alcalóides, terpenóides, lignóides, policetídeos, entre outros.
Estas substâncias têm uma longa e bem sucedida história nos processos de descoberta e desenvolvimento de fármacos. Muitas plantas são utilizadas na medicina popular por produzir metabólitos secundários que apresentam atividades farmacológicas diversas, tais como antiinflamatória, antitumoral, antifúngica e antiparasitária. O uso de muitos destes metabólitos secundários como protótipos de fármacos tem estimulado a pesquisa de espécies vegetais sob o ponto de vista fitoquímico, por parte das indústrias farmacêuticas.
Nos dias atuais, mesmo com o grande desenvolvimento de drogas obtidas por síntese orgânica, os produtos naturais continuam desempenhando um papel de destaque na saúde pública. Atualmente os produtos naturais são responsáveis, direta ou indiretamente, por cerca de 40% de todos os fármacos disponíveis na terapêutica moderna e, considerando os usados como antibióticos ou antitumorais, esta porcentagem é de aproximadamente 70%. Entre 1981 e 2010*, de todas as novas espécies químicas aprovadas como fármacos (1.184), 5% correspondem a produtos naturais, 48,6% correspondem a derivados semissintéticos de produtos naturais, derivados de produtos naturais e produtos sintetizados com grupos farmacofóricos (característica estrutural responsável pela atividade biológica observada, sendo necessário para a ligação do composto em uma enzima ou receptor específico) baseados em produtos naturais, 18% são produtos biológicos e vacinas e 30% são produtos totalmente sintéticos, planejados a partir de conhecimentos adquiridos sobre produtos naturais.
O interesse por produtos naturais ficou maior principalmente devido às populações acreditarem que estas substâncias são isentas ou possuem poucos efeitos colaterais, e que são aparentemente eficazes nos casos onde a medicina tradicional não alcançou resultados esperados, o que nem sempre é confirmado pelas pesquisas científicas que avaliam a eficácia e a segurança, assim também como a garantia de qualidade na produção.
Mais recentemente, o interesse pelos medicamentos de origem vegetal foi reativado pela a indústria farmacêutica, motivada pelo sucesso de quimioterápicos como vincristina e vimblastina, obtidas de plantas, como os alcalóides extraídos da espécie vegetal Catharanthus roseus (Figura 1), descobertos no final dos anos 60 e ainda considerados indispensáveis para o tratamento de leucemia. Outro exemplo são os taxóides extraídos das espécies Taxus brevifolia (teixo do Pacífico) e T. baccata, utilizados em cânceres ginecológicos. Este interesse é motivado sobretudo pela dificuldade de se obter substâncias com estruturas moleculares complexas por síntese a custo racional.
As pesquisas com plantas medicinais envolvem vários aspectos. Dentre eles, destacam-se: a) investigações da medicina tradicional e popular (etnobotânica); b) isolamento, purificação e caracterização de princípios ativos (fitoquímica); c) investigação farmacológica de extratos e dos constituintes químicos isolados (farmacologia); d) transformações químicas de princípios ativos (química orgânica sintética); e) estudo da relação estrutura/atividade e dos mecanismos de ação dos princípios ativos (química medicinal e farmacologia) e f) operação de formulações para a produção de fitoterápicos.
Países como China e Índia têm encontrado meios de legalizar e reconhecer o uso tradicional das plantas. A cultura chinesa utiliza o conhecimento popular das ervas há cinco séculos, com mais de 5 mil espécies que foram identificadas e utilizadas e 300 espécies analisadas com seus princípios ativos conhecidos.
As plantas medicinais tornaram-se importantes instrumentos na prevenção, recuperação e promoção da saúde nesses países não só pela cultura medicinal dos seus povos, mas também em função da carência no acesso aos serviços de saúde e aos medicamentos. Simões et al.** citam estudos recentes em que a chamada “megabiodiversidade”***, representada por Austrália, Brasil, China, Colômbia, Equador, Índia, Indonésia, Madagascar, Malásia, México, Peru e Zaire, está seriamente ameaçada, o que justifica a utilização das plantas de forma sustentável, para conservação e reparação das áreas degradadas.
Como emprego medicinal dos produtos naturais pode-se citar centenas de exemplos, porém alguns são clássicos como é o caso do salgueiro, uma planta conhecida cientificamente como Salix alba, cujas cascas foram usadas durante séculos na Europa, Ásia e África para combater febre e dor. Em 1763 foi comprovado o efeito analgésico de cascas do salgueiro, sendo que o princípio ativo salicilina foi isolada em 1828 e, somente em 1898, Felix Hofman sintetizou um composto baseado na estrutura da salicilina, o medicamento mais utilizado mundialmente: o ácido acetil salicílico (AAS), comumente conhecido como aspirina (Figura 2).
Papaver somniferum é o nome científico da planta conhecida desde 4000 a.C. como papoula. Esta planta é usada para a extração do ópio, cujo componente majoritário, a morfina, foi isolado por Setürner no início do século XIX. A morfina tem sido amplamente empregada para combater a dor. Passado mais de um século isolou-se desta mesma planta a codeína e mais tarde a papaverina.
Outros exemplos marcantes de plantas das quais foram extraídas substâncias com propriedades medicinais são Digitalis purpurea e Digitalis lanata. Os estudos com estas plantas levaram à descoberta de medicamentos para o coração. Delas extraem-se glicosídeos cardiotônicos chamados cardenolídeos, sendo os mais utilizados a digitoxina e a digoxina.
Atualmente, há estimativa da existência de cerca de 350-550 mil espécies diferentes de plantas, sendo que apenas 5% têm sido estudadas fitoquimicamente e, uma porcentagem ainda menor, avaliada sob os aspectos biológicos. O potencial terapêutico de plantas medicinais tem sido verificado a partir de extratos e óleos essenciais e muitas destas substâncias extraídas têm grandes possibilidades de futuramente virem a ser aproveitadas como agentes medicinais.
As plantas medicinais têm sido muito utilizadas em tratamentos médicos e, em muitos locais do planeta, ainda são os únicos remédios contra várias doenças. Usadas com as mais variadas propriedades medicinais, estas plantas representam um valioso arsenal na busca de novas possibilidades para a terapêutica, fornecendo substâncias que podem ser utilizadas como protótipos de fármacos ou diretamente na fitoterapia.
Patricia Sartorelli – Doutora em Química Orgânica
Professora adjunta IV da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP
Contatos podem ser feitos pelo e-mail: psartorelli@unifesp.br
Referências:
* Fonte: Newman, D.J.; Gragg, G.M. Natural Products as Sources of New Drugs over the 30 Years from 1981 to 2010. J Nat Prod . 2012 23; 75(3): 311–335.
** Fonte: Guerra, M. P., Nodari R. O., Biodiversidade: Aspectos Biológicos, geográficos, legais e éticos, Em: Simões O. M. C., Schenkel R. P., Gosmann G., Mello P. C. J., Mentz A. L., Petrovick P. R., Farmacognosia da planta medicamento. Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2003.
***Para ser considerado um país megadiverso, este país tem que ter pelo menos 2% da diversidade total global em plantas vasculares (apresentam vasos condutores de seiva, o que dá à planta a possibilidade de adquirir maior porte).Este critério foi definido pela Convenção de Diversidade Biológica assinada durante a ECO-92 (na ocasião foram definidos os 12 países considerados megadiversos).
Publicado em 21/08/2015